03 novembro 2007

EXISTÊNCIA URBANA

Os carros trafegam apressados, como se alguma velocidade a mais fosse fazer diferença em meio aos obstáculos que ainda teriam que ser superados para a chegada ao destino: o local de trabalho desses entusiasmados motoristas, ansiosos por ultrapassar seus concorrentes, seus pares nessa corrida urbana mal organizada e sem podium no final.

Os movimentos são bruscos, as sinalizações ignoradas, a educação coletiva evolui de modo bem mais lento, sufocada pelo desejo de vingança dos ultrapassados, pela ansiedade dos que se arrogam vencedores desse trágico esporte.

No alto das laterais das vias, já não se lêem mais as placas de publicidades coloridas de outrora, desapareceram os painéis luminosos, ficaram as paredes dos prédios, escuras, expostas, pixações à mostra...

Nenhum vendaval ou acidente da natureza, senão a criatividade dos poderes públicos, ávidos em implantar mudanças nas paisagens, em marcar presença na memória das pessoas, em desfazer o que está feito para reinventar o que ficará por fazer.

Ao largo das avenidas, concentrados nos semáforos, ocupantes de um espaço desvalorizado, sem lugar para engendrar arquiteturas. Feito um pit stop de fórmula um, aproximam-se dos carros, vendem, pedem, limpam, fazem malabarismos, assustam, assaltam, sob olhares ansiosos dos pilotos, digo, motoristas.

Reaparece a luz verde, retornam à esquina, desviando das arrancadas instantâneas, desafiando perigos repetidos a cada pausa de trinta segundos.

No interior dos “cockpit” muitos permanecem alheios à sorte de outrem, que apostam sua sobrevivência nessa hostil intermitência de tráfego. Outros se penalizam, mas seguem adiante, conformando-se com a miséria, em angustioso desafio à indiferença generalizada.

O convívio com essa realidade acompanha o trajeto por alguns segundos. Reflexões superficiais nos fazem despertar a humanidade interior escondida. Em instantes, a consciência das aspirações imediatas nos conduz de volta a normalidade individualista.

Também a postos para a largada estão os ônibus, quase sempre lotados de esforçados combatentes de um esporte radicalmente afeito às metrópoles: desembarcar ileso e íntegro no destino programado.

As regras para os ônibus ora são privilegiadas com faixas exclusivas, ora são dificultadas por um sistema que beneficia o automóvel particular. Os motoristas expostos a enormes jornadas de trabalho enfrentam com vigor as barreiras inumeráveis de uma rotina de passageiros, tráfego intenso, dias que não terminam nunca.

Não ficam atrás os trens metropolitanos e os metrôs, escondidos, sob o solo, ou segregados por trilhos e muros, em rotas próprias, entupidos, superlotados, em ofensiva situação de desconforto.

Os dias já nascem cobertos de neblina, ou de densa poluição. O sol esconde-se na espessura de nuvens intrusas ou de gases insistentes em atingir a fragilidade das nossas vias, as respiratórias, é claro.

Em lugares diferentes percebemos que o Sol não nasce para todos. Ele desafia os prognósticos ambientais e descobre algumas fendas para enviar seus raios desfigurados, mas comemorados alegremente por quem já não os vê com freqüência.

Tem gente que gosta dessa sombria atmosfera, e se realiza no vai e vem das pessoas e dos veículos, do sol e da chuva, do dia e da noite, da neblina e da fumaça.

Tem gente que protesta, que desafia, que se ilude com as mudanças, que se revigora com a esperança, que se distingue da maioria.

Muitos seguem a multidão, brincam quando podem, pensam quando querem, sentem quando calam.

O dia promete ser longo, tarefas, problemas, clientes, mais tarefas, mais problemas, mais clientes...

Os indivíduos vão se encaixando nas turmas, reunindo grupos, formando equipes, dividindo aspirações coletivas, somando esforços pessoais, segregando ambientes familiares, inventando o seu novo mundo do dia presente.

O trabalho parece ser a razão da existência, ou o motor das energias humanas colocadas em ação, na soma dos indivíduos que formam a sociedade.

Mas cada um não percebe o quanto sua contribuição para o todo foi importante.

Também não percebemos que aquele “pit stop” das esquinas da metrópole reflete o nosso isolamento das verdades indigestas.

Assimilamos as nossas dificuldades cotidianas e revelamos nossa tolerância ao abismo que separa realidades inconfundívelmente avessas.

Seguimos para um futuro desejado e acreditamos em amanhãs melhores, sem a indispensável construção do caminho que os tornarão possíveis.

Invertemos hábitos sociáveis e simples para alimentarmos a linha divisória que nos protege da miséria assustadora dos que labutam por mínima e hostil sobrevivência.

Inventamos uma cidade alheia às suas patologias urbanas, indiferente à agressividade estética das periferias, fortificada por suas intransponíveis linguagens para os que não falam o idioma culto dos afortunados.

No fim do dia, repete-se o caos invertido, o regresso cansativo dos caminhos congestionados e dos veículos desgovernados.

Voltamos para as futilidades domésticas, assistimos aos telejornais que repetem as mesmas cenas de sempre, recheadas de cumplicidade midiática, de sensacionalismos mórbidos.

Habituamos a incorporar sensações de personagens irreais, assumimos como nossos os seus desejos e pontos de vistas, e desligamos a tela da vida em troca da fantasia extasiada das belezas de existências artificiais.

E nos revigoramos sempre para enfrentar a caminhada persistente em busca das nossas nem sempre reveladas aspirações pessoais.

Seguimos com nossas certezas e forças, desafiando experiências adversas e superando barreiras de difícil ultrapassagem.

Nossa consciência pavimenta uma longa estrada, que vai sendo desenhada pelas adversidades, pelas experiências, pelas pessoas que nos acompanham, pelos que nos ensinam, pelos que nos atrapalham...

Viver é para todos. Crescer é para os que querem marcar a existência por sua própria personalidade, por uma contribuição a essa universal singularidade sobre o que é ser humano.

E a minha humanidade é parte de toda a humanidade. Nem mais, nem menos.

A FORÇA DO POVO